Literatura sobre vôlei: a fraca difusão do conhecimento
Apesar de ter suas seleções de vôlei entre as mais respeitadas do mundo, sendo o país com o maior número de conquistas neste século, a literatura sobre a modalidade ainda é pobre no Brasil. O cenário não é muito diferente lá fora, com exceção da produção acadêmica nos Estados Unidos. O lançamento de um livro em inglês, Volleyball Coaching Wizards ("Magos dos Treinos de Vôlei", numa tradução livre), contendo entrevistas sobre o trabalho desenvolvido por oito técnicos de renome internacional, motivou o Saída de Rede a abrir espaço para um debate: qual o nível do conhecimento difundido no país ou no exterior relacionado ao voleibol? Há uma literatura consistente relacionada a aspectos técnicos desse esporte? O SdR procurou diversos treinadores consagrados e discutiu essas questões.
Falta de intercâmbio
"A modalidade como um todo é afetada no longo prazo quando não compartilhamos conhecimento", disse ao blog o australiano Mark Lebedew, que em parceria com o americano John Forman escreveu Volleyball Coaching Wizards e pensa em lançar um segundo volume. "Eu acho que a literatura dedicada ao vôlei é muito pobre em todas as áreas. Quando se pensa na metodologia e na filosofia de treino não há muito, especialmente devido à falta de intercâmbio. Eu diria que praticamente nenhum treinador dos países de língua inglesa conhece o trabalho do Bernardo Rezende ou do Julio Velasco, sabem mais sobre a fama deles. O mesmo ocorre na maior parte do mundo em relação a técnicos americanos como Doug Beal e Carl McGown", completa Lebedew, que é treinador do clube polonês Jastrzebski Wegiel, atualmente quarto colocado na liga daquele país. Ele já foi assistente técnico das seleções da Austrália e da Alemanha, além de ter conquistado três vezes consecutivas a liga alemã com o Berlin Recycling Volleys.
Pouca coisa no Brasil
Com a palavra, o multicampeão Bernardo Rezende, autor de Transformando Suor em Ouro, best seller brasileiro, com mais de 400 mil exemplares vendidos. "Há pouca coisa escrita sobre voleibol. No Brasil, muito pouco. Nos EUA há uma bibliografia mais ampla e interessante, em alguns países da Europa também encontramos alguns títulos com bom material. Creio que essa ausência de uma literatura mais ampla no Brasil se deva ao fato de se escrever pouco, se dar pouca importância a relatos muito ricos e interessantes. Há alguns livros técnicos, mas ainda pobres diante de tanta história e conteúdo que o voleibol brasileiro construiu. Tenho uma farta biblioteca de livros de esportes, mas praticamente todos no idioma inglês e referentes a temas ligados ao esporte e personagens norte-americanos", contou ao Saída de Rede. O próprio livro de Bernardinho fala sobre métodos de gestão, mesclando ainda passagens de sua história como jogador e treinador, além do aspecto motivacional.
Escola brasileira de vôlei
"Eu me sinto responsável por não produzir. Há que se falar de algo: a escola brasileira de vôlei. Nós temos um voleibol que é admirado e estudado no mundo inteiro, mas não difundimos o conhecimento entre nós mesmos. Temos uma metodologia muito particular, que vem evoluindo e que dá frutos desde os anos 1980. Antes, éramos uma cópia. Até meados dos anos 1970 copiávamos os japoneses, os soviéticos, os tchecos. Víamos algo legal e pensávamos: 'Vamos copiar'. Depois passamos a criar, com o trabalho de gente como Bebeto de Freitas, Josenildo Carvalho, Jorge de Barros e Célio Cordeiro, entre outros", relembrou o técnico do Lebes Gedore Canoas, Marcelo Fronckowiak, que tem três títulos da Superliga como jogador e dois no comando de outros clubes – foi o último a derrotar o Sada Cruzeiro numa final de Superliga, com o extinto RJX na temporada 2012/2013. Reconhecido na Europa, Fronckowiak trabalhou seis anos como treinador na França e por seis meses na Rússia.
CBV
A Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) admite que poderia haver mais registros, mas vê um cenário positivo. "A literatura sobre o vôlei é muito extensa, só menor do que a do futebol. E a produção acadêmica é a mais significativa entre todos os esportes, o que contribui para o desenvolvimento do voleibol. Mas ainda temos espaço para mais relatos, descrições, análises táticas e técnicas das grandes estrelas do voleibol e seus resultados", afirmou Marcia Albergaria, doutora em Educação Física e consultora da Universidade Corporativa do Voleibol, da CBV.
Curta o Saída de Rede no Facebook
É evidente que numa pesquisa rápida na internet você vai encontrar diversos títulos dedicados à modalidade no Brasil, mas a maioria foi lançada no século passado e não teve novas edições, caindo no velho problema da defasagem de conhecimentos. Há um grande número de biografias, mas essas cumprem um outro papel importante: aproximam o fã do ídolo, ao contar a trajetória deste, ajudando a popularizar o vôlei. Também relevante na divulgação do esporte é o nicho dos relatos de grandes conquistas, que obviamente não alcançam a parte técnica nem se propõem a isso.
Aspecto psicológico
O argentino Marcelo Mendez, técnico tricampeão mundial e tetracampeão da Superliga com o Sada Cruzeiro, vai pelo caminho dos seus colegas. "A literatura (do vôlei) é muito pobre, especialmente quando se pensa sob o prisma da técnica e da tática. O voleibol é muito diferente de outras modalidades, tem um componente psicológico relevante, é um esporte coletivo sem contato com o adversário. Uma literatura mais rica acrescentaria muito, seria importante para desenvolver o esporte. Englobando também preparação física, aspectos psicológicos e pedagógicos".
Tempo escasso
Seu compatriota Guillermo Orduna, que levou a seleção feminina da Argentina à primeira participação nos Jogos Olímpicos na Rio 2016, fez uma reflexão importante ao SdR: "Entre os treinadores que chegam ao alto nível e acumulam experiência são poucos os que colocam seu conhecimento em livros, no máximo escrevem um artigo ou ministram clínicas. No meu caso, eu gostaria em algum momento de escrever um livro voltado para o vôlei feminino, mas o tempo é escasso".
Por que a Superliga ainda não empolgou na TV aberta?
A frase de Orduna logo acima é uma deixa para uma declaração do técnico sueco Anders Kristiansson, citando Julio Velasco. O europeu destaca uma observação feita pelo argentino, responsável por transformar a Itália em potência nos anos 1990, segundo a qual "técnicos de verdade não escrevem livros porque eles estão muito ocupados pensando no treino". Kristiansson, à frente do clube japonês Toyoda Gosei desde 2013, foi quem fez da sua Suécia natal uma seleção emergente no masculino no final dos anos 1980 e início da década seguinte – quarto lugar no Europeu 1987, prata no de 1989 e participações honrosas na Olimpíada de Seul 1988 e Mundial 1990.
Cenário bom nos EUA
Nos EUA, como informamos no início do post, a situação muda. "Aqui temos o conhecimento técnico difundido nas escolas e universidades, além das publicações da Associação Americana de Treinadores de Vôlei (AVCA, na sigla em inglês). Fora do país não vejo muita coisa", disse ao Saída de Rede o técnico da seleção feminina dos EUA, Karch Kiraly, campeão mundial em 2014, bronze na Copa do Mundo 2015 e na Rio 2016. Ele ressaltou ainda ter como referência publicações de outros esportes, que tenta adaptar ao voleibol.
Diálogo
O treinador da seleção masculina americana, John Speraw, campeão da Liga Mundial 2014 e da Copa do Mundo 2015, bronze na Rio 2016, nos contou que jamais leu livro algum sobre a modalidade, mas que gosta de consultar artigos, blogs, além de ouvir podcasts. "Temos sorte nos Estados Unidos porque a AVCA e a USA Volleyball (organização que administra o esporte no país) fazem um bom trabalho tentando disseminar informação. Eu diria que é importante para o vôlei que haja sempre diálogo a respeito do jogo e da metodologia de treino, isso é fundamental".
Preparação física
Laurent Tillie, técnico da seleção masculina da França, campeão europeu e da Liga Mundial em 2015, enfatizou ao blog a importância da preparação física e que deve haver publicações com foco também nesse aspecto. "A técnica acompanha a evolução física do atleta. Sem isso, não há desenvolvimento. Voleibol é um esporte que demanda muita técnica e surpreendentemente não temos tantos livros que contemplem aspectos físicos e técnicos voltados à modalidade".
Baixo grau de profissionalismo
Há quem bata mais forte e enxergue outra razão para o problema. "A literatura do vôlei é pobre e isso é um espelho do baixo grau de profissionalismo do nosso esporte. Se você pensar, por exemplo, no número de ligas de clubes que tenham alto nível ao redor do mundo, isso fica claro. Se compararmos com o futebol e com o basquete, puxa vida, será um massacre. Há muita gente jogando vôlei no mundo todo, mas não existe muita estrutura profissional e isso, claro, se reflete na difusão do conhecimento", ponderou o italiano Roberto Santilli, que no ciclo olímpico passado treinou a seleção masculina da Austrália, depois de construir sua carreira dirigindo clubes da Itália, da Polônia e da Rússia.
Transformar teoria em prática
Independentemente da profusão ou não de publicações enfocando aspectos táticos e técnicos, o sérvio Nikola Grbic apontou para a necessidade de preparar os novos treinadores para o uso dessas ferramentas. "Temos que nos preocupar com a formação de quem assume as equipes, para que sejam capazes de transformar esse conhecimento em algo prático", comentou Grbic ao SdR. Este ano o treinador levou a Sérvia ao inédito título da Liga Mundial, depois do vice-campeonato em 2015.
Volleypedia
"O conhecimento deveria ser mais acessível, de fato não há muita coisa publicada sobre voleibol em termos técnicos e táticos. Seria formidável seguir a direção que o mundo vem tomando e ter uma plataforma com informações armazenadas por gente de todas as partes, com critérios de edição, alguém capacitado que administrasse, para que o conteúdo pudesse ajudar na formação de um modo amplo, uma espécie de wikipedia do vôlei, a volleypedia", sugeriu ao blog Mauro Berruto, que no período 2006-2010 colocou a seleção masculina da Finlândia no mapa do vôlei e no 2011-2015 comandou a equipe italiana, tendo conquistado bronze em Londres 2012, além de duas pratas nos Europeus 2011 e 2013. A ideia dele soa utópica.
Impacto
"A literatura em qualquer esporte deve nos mostrar o que foi feito, desenvolvido, o que podemos alcançar trilhando certos caminhos. Por isso é tão importante criar uma literatura forte, que possa ter impacto no voleibol", disse John Forman, parceiro de Mark Lebedew no projeto Volleyball Coaching Wizards e técnico no concorrido mercado universitário americano – ele treina a equipe masculina da Midwestern State University, no Texas.
O próprio Lebedew, há dois anos, com a ajuda de seu irmão e de seu pai, fez a primeira tradução do russo para o inglês do livro sobre tática e técnica do lendário treinador soviético Viatcheslav Platonov (My Profession – The Game). Porém, a publicação acaba sendo mais curiosa do que útil, uma vez que as informações refletem o jogo praticado pelos soviéticos nos anos 1970 e 1980. Platonov foi treinador da URSS no período 1977-1985, quando conquistou um ouro olímpico, dois títulos mundiais e duas Copas do Mundo. Mais tarde, nos anos 1990, ele treinaria a Rússia outras duas vezes, mas sem o mesmo sucesso.
Excelência brasileira
"O Brasil certamente tem muito a contribuir na expansão do conhecimento relacionado ao voleibol. Vocês têm técnicos como Bernardinho, Zé Roberto, Bebeto de Freitas e vários outros, que tiveram impacto na modalidade ao redor do mundo, em alto nível. Infelizmente, seus métodos de trabalho são desconhecidos pela maioria da comunidade internacional do vôlei", concluiu Mark Lebedew.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.