Lutadora, Mara, do Minas, busca força para superar drama pessoal
Janaína Faustino
01/03/2019 11h52
"Nada na minha vida nunca foi fácil. Nada". A afirmação incisiva ilustra muito bem a trajetória de uma das jogadoras mais queridas pela apaixonada torcida do tradicional Itambé Minas. O jeito brincalhão e o sorriso largo, no entanto, escondem uma história de vida de superação marcada por grandes dificuldades e, mais recentemente, por um enorme drama pessoal. Estamos falando de Mara Leão, talentosa meio de rede de 27 anos que vem se destacando na equipe que hoje é apontada como a melhor do vôlei feminino brasileiro.
Em entrevista ao Saída de Rede, a central falou sobre diversos assuntos, entre eles, o começo difícil na carreira, os sonhos, o racismo, o atual momento vivido pelo Minas e o trágico acidente que deixou sua mãe em estado de tetraplegia.
Nascida na pacata cidade de Sabinópolis, Mara foi criada com os dois irmãos em Ravena, distrito de Sabará (MG), pela mãe, dona Leodita Ferreira. Como muitas meninas pobres e negras, teve uma infância repleta de privações. Tantas que a meio de rede conta que, antes de ter descoberto o vôlei, aos 14 anos, não fazia ideia do que era a modalidade.
Ela explica que tudo começou quando foi abordada por uma jovem chamada Márcia que na época treinava no Mackenzie Esporte Clube – importante clube mineiro formador de grandes jogadoras, como a oposta Sheilla Castro e a ponteira Gabi, entre outras – enquanto se servia no bandejão de um restaurante na capital Belo Horizonte.
"Eu fui descoberta neste restaurante popular no Centro. Era véspera de Natal e a gente foi passear no Parque Municipal. Com a grana curta, fomos almoçar lá. Aí eu estava na fila quando essa moça chegou e me perguntou se eu jogava vôlei. Respondi que não, que só estudava. Então ela disse: 'por que você não faz um teste no Mackenzie?'. E me deu o número dela. A gente almoçou e foi embora. Só que, como eu vim do interior, não tinha a menor noção do que era o vôlei", relembra a atleta.
"O tempo passou, eu insisti e a minha mãe falou para nós irmos lá tentar, já que eu não estava fazendo nada. Todo mundo ficou me zoando porque fui de vestido e salto. Cheguei lá e vi as meninas todas suadas, de tênis, descabeladas e aí entendi que não era nada do que eu pensava. Então comecei a jogar lá no Mackenzie e passei a gostar. Acho que a gente tem medo ou diz que não gosta de tudo o que a gente não conhece. Mas, na verdade, eu não sabia o que era e estava bastante receosa para começar a jogar vôlei. Foi assim que começou a minha trajetória", complementa.
Segundo a central, contudo, sua mãe não acreditou logo na possibilidade da filha se tornar uma atleta profissional. Mara diz que se lembra até hoje que a mãe lhe disse: 'filha, negro e pobre não tem vez nesse país'.
"Realmente a minha mãe falou isso porque, muitas vezes, em uma família mais humilde, por a gente ser negro e saber que existe esse preconceito, a gente escuta esse tipo de coisa, né? Eu não imaginava como seria o vôlei. Pensei que seria difícil, como é com uma artista ou uma modelo que, sendo negra, tem que ser duas vezes melhor. Amo minha raça, acho minha cor maravilhosa e não trocaria por nada", ressalta a jogadora, reforçando que, por causa do racismo, negros precisam vencer inúmeras barreiras e se desdobrar para "provar" o quanto são capazes para serem aceitos e alcançarem o sucesso.
"Essa é uma realidade do nosso país. O preconceito existe sim. Eu nunca sofri discriminação direta, de alguém chegar e falar alguma coisa. Mas, muitas vezes, só pelo olhar das pessoas você já sabe que aquilo é uma forma de preconceito. Pela maneira como elas te olham por você estar em um lugar melhor, um restaurante, sabe? Ou por você conseguir comprar alguma coisa a pessoa te olha diferente. No esporte, eu acho que é um pouco menos, mas o racismo está presente sim no dia a dia dos negros no Brasil", frisa, mostrando que o preconceito racial ainda é uma chaga viva que estrutura nossa sociedade e se manifesta, como ela própria atesta, de várias maneiras na vida cotidiana.
Em função da altura (1,82m na época e 1,90m hoje), logo que começou a jogar no Mackenzie a atleta foi deslocada para o meio de rede e se apaixonou pela posição. Já como profissional, passou pelo Fluminense, Rio de Janeiro – onde conquistou o bicampeonato na Superliga com o técnico Bernardinho –, e pelo São Caetano antes de retornar ao Minas, clube em que ela iniciou a carreira e onde está em sua quarta temporada, tendo sido eleita a melhor bloqueadora do campeonato na temporada 2016/2017.
DISPUTA PELA TITULARIDADE
Neste Minas que tem feito uma temporada espetacular, com três títulos já alcançados – o Estadual, a Copa Brasil e o Sul-Americano – e a manutenção da liderança na Superliga com 52 pontos e apenas uma derrota em 19 partidas, Mara se sente feliz. Afirma que as conquistas dão mais confiança e reconhece o favoritismo da equipe. Além disso, diz que tem aprendido bastante com o técnico italiano Stefano Lavarini.
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"Nesses dois anos em que estou aqui tem sido ótimo, estou ganhando muita experiência. Ele é um cara inteligente, estudioso e sempre quer dar o melhor de si. E, além de pensar dentro de quadra, ele se preocupa com a gente, em saber como nós estamos. Isso é raro porque às vezes as pessoas só cobram muito e não observam o lado pessoal, humano, de algo que você esteja passando. Ele cuida de cada detalhe, de cada uma. E ainda traz uma forma diferente de treinar e de jogar lá de fora, o que é muito bom", elogia.
De acordo com a atleta, a competição pela titularidade se dá de maneira respeitosa no grupo. Sincera, ela reconhece o melhor momento vivido por sua companheira de posição, a central Mayany, no último Mundial de Clubes onde a equipe conquistou o vice-campeonato.
"Eu não estava numa fase muito boa no Mundial e a Mayany chegou arrebentando. É uma menina de talento e tem muito a crescer. Tem tudo para se tornar a grande jogadora que ela está sendo, uma vez que já iniciou a trajetória dela. Eu achei muito bacana porque ela completou o grupo. Deve jogar quem estiver melhor. Todos nós trabalhamos para isso e se não acontecesse desta forma seria injusto. [A competição] é ótima para nós e só tem a acrescentar no crescimento do time", avalia.
DRAMA PESSOAL
Entretanto, foi justamente no período em que estava disputando o Mundial, na China, que a vida lhe deu mais um terrível golpe. Sua mãe foi atropelada na cidade de Ravena, onde mora, e está temporariamente tetraplégica. O trágico acidente foi inicialmente mantido em segredo pela família para que a atleta não se preocupasse e permanecesse focada na competição. Mara só recebeu a notícia quando chegou ao Brasil.
"Temos muita força em Deus e cremos que Ele pode fazer tudo. Acreditamos que ela possa voltar, com o tempo, a ter os movimentos. Ela ficou internada por cerca de dois meses e meio, passou por uma cirurgia e faz uma semana que, graças a Deus, está em casa. Infelizmente, ainda em estado de tetraplegia. (…) Eu sempre passei por muitos momentos difíceis na vida, nunca tive nada fácil. Nada nunca foi fácil", relata a jogadora, resignada.
"Mas o momento mais terrível para mim foi ver a minha mãe naquele estado. Uma mulher forte, bonita, guerreira, que criou três filhos sozinha e sempre trabalhou muito. Vê-la sem poder se mexer, sofrendo, é horrível. O que mais dói é saber que a gente não pode aliviar o sofrimento, a dor que ela sente. A gente dá amor, carinho, mas o que ela sofre não tem como a gente amenizar. Nossa família está fazendo o máximo e tudo está nas mãos de Deus. Agora só o tempo mesmo", revela.
Contudo, apesar de todas as "pancadas", Mara não se deixa abater. Resiliente, a atleta segue em frente, focando no Minas. A central vem fazendo partidas bem consistentes, colaborando com a equipe tanto no ataque quanto no bloqueio. Exigente, ela ressalta que precisa "correr atrás de várias coisas" e busca evoluir como jogadora "em todos os fundamentos". Sobre a seleção brasileira, que tanto necessita de renovação, ela responde com equilíbrio.
"Todo mundo fala sobre a seleção. Eu me preocupo com o trabalho. O que vier depois disso será consequência. Se for para eu estar lá, bom. Se não for eu vou continuar trabalhando. Mas têm pessoas capacitadas para decidir. Os treinadores e as meninas que estarão lá são capazes de fazer o que o Brasil precisa. Então, estou tranquila em relação a isso", coloca a meio de rede ganhadora de um sul-americano, da última edição do Grand Prix (agora Liga das Nações), em 2017, e de um torneio de Montreux com a seleção.
No final da entrevista, quando perguntada sobre o maior sonho de sua carreira, Mara, com toda sensibilidade, respondeu qual era o seu maior sonho na vida.
"Quando comecei a jogar vôlei, meu maior sonho era tentar dar uma casa melhor para a minha mãe, que toda a vida sempre foi muito humilde, e ajudar meus irmãos. Isso foi algo que eu consegui. Hoje, jogando, posso ajudá-los quando eles precisam. Esse sempre foi o meu sonho. O que espero é que continue assim, né? Que eu consiga dar o pouquinho que tenho. Isso é o que eu mais faço e quero no momento", concluiu a atleta.
Sobre a autora
Carolina Canossa - Jornalista com experiência de dez anos na cobertura de esportes olímpicos, com destaque para o vôlei, incluindo torneios internacionais masculinos e femininos.
Sobre o blog
O Saída de Rede é um blog que apresenta reportagens e análises sobre o que acontece no vôlei, além de lembrar momentos históricos da modalidade. Nosso objetivo é debater o vôlei de maneira séria e qualificada, tendo em vista não só chamar a atenção dos fãs da modalidade, mas também de pessoas que não costumam acompanhar as partidas regularmente.