Base feminina de vôlei: por que não estão surgindo novos talentos?
Janaína Faustino
14/11/2018 06h00
Sinal dos tempos de crise nas categorias de base: no Campeonato Sul-Americano, a equipe sub-18 conquistou a medalha de bronze. Até então, a seleção nunca havia ficado de fora da final do torneio (Foto: Divulgação/CBV)
A queda retumbante na segunda fase do Campeonato Mundial encerrou de forma melancólica uma temporada muito ruim para a seleção brasileira feminina de vôlei. Uma das grandes referências internacionais da modalidade por tudo o que construiu ao longo das últimas décadas, a equipe, pela primeira vez, desde 2003, quando o técnico José Roberto Guimarães assumiu o posto, não subiu ao pódio em nenhuma das competições que disputou – além da eliminação precoce no Mundial, onde terminou na sétima colocação, o time verde-amarelo alcançou apenas o quarto lugar tanto na Liga das Nações quanto no Montreux.
Os maus resultados e o fraco desempenho nesta temporada motivaram discussões acaloradas entre torcedores e imprensa acerca de um tema que vez ou outra retorna ao centro do debate: o processo de renovação por que passa a seleção feminina. Afinal, é perceptível que além de não termos mais a mesma quantidade de atletas à disposição, as peças disponíveis para reposição não possuem a mesma qualidade de outros tempos. O vôlei nacional passa por um período de transição, o que poderia ser visto de forma natural, já que várias grandes jogadoras se aposentaram e o processo de consolidação de novas atletas pode levar algum tempo. O problema, entretanto, é o fato de que não estamos mais conseguindo formar jogadoras com a mesma qualidade e abundância. Enquanto vemos outras seleções investindo pesado em suas bases e revelando talentos nas equipes principais, a ponto de já apresentarem resultados consistentes, como é o caso da vice-campeã mundial Itália, que jogou a competição com um time extremamente jovem, a seleção adulta do Brasil "patina" na revelação de novas joias.
A Azzurra, especificamente, é um ótimo exemplo de como o bom trabalho com a base, realizado a longo prazo, pode render grandes frutos. Sob a batuta do técnico argentino naturalizado italiano Julio Velasco, a Federação Italiana de Vôlei criou o Club Italia, que nasceu com o objetivo de descobrir e lapidar jovens atletas promissoras. Até hoje, a proposta é fazer com que as meninas, que têm média de idade de 18 anos, possam estudar, treinar e jogar em alto nível, acumulando a experiência necessária para atuarem em outros clubes e na seleção. Para se ter uma ideia da importância do projeto, da equipe vice-campeã mundial, foram formadas pelo Club Italia as centrais Cristina Chirichella, de 24 anos, e Anna Danesi, de 22, a ponteira Elena Pietrini, de 18, a levantadora Ofelia Malinov, de 22, e a oposta Paola Egonu, de 19 anos, considerada a maior estrela do voleibol italiano na atualidade. Além delas, a oposta Serena Ortolani, que integrou a seleção no Mundial como reserva de Egonu, também passou pelo clube em 2002. Assim, com imenso potencial de crescimento, esta jovem seleção italiana deverá chegar como uma das favoritas ao ouro nos jogos de Tóquio, em 2020.
A jovem seleção italiana, vice-campeã mundial, é um ótimo exemplo de um trabalho consistente com as categorias de base (Foto: Divulgação/FIVB)
No caso do Brasil, nesta temporada, alguns problemas escancararam a escassez e as imensas dificuldades da seleção para lançar jovens valores: 1) a inexistência de uma oposta reserva à altura de Tandara; 2) a convocação de jogadoras (algumas veteranas) ainda em processo de recuperação de lesões sérias e/ou vindo de um longo período sem jogar, ou seja, sem plenas condições físicas para disputar um campeonato tão intenso quanto o Mundial; e 3) o fato de não ter havido qualquer clamor por parte da torcida pela ausência de atletas que não foram chamadas. Estes fatores, conjugados, podem confirmar a hipótese de que a seleção principal já começa a sentir os efeitos de uma crise na base que vem se anunciando há algum tempo.
Historicamente, o país sempre revelou grandes atletas e, com isso, acabou construindo uma hegemonia nas competições da modalidade mundo afora. Conforme já exposto aqui no blog, os campeonatos das seleções de base, promovidos pela FIVB desde 1977, têm o Brasil como o maior vencedor em todas as faixas etárias tanto no masculino quanto no feminino (ao total, são 21 troféus). Contudo, o vôlei nacional ganhou seus últimos dois títulos apenas na categoria até 23 anos, criada mais recentemente, em 2013 (no masculino) e em 2015 (no feminino). A última vez que a equipe feminina sub-19 se sagrou campeã foi no longínquo 2007. Já na categoria infanto-juvenil, a vitória derradeira com as meninas foi em 2009, o que significa que existe um hiato de quase dez anos. Os mais recentes resultados alcançados pelas seleções de base já revelam que o problema é estrutural e o país vem perdendo terreno no cenário internacional.
No ano passado, pela primeira vez, desde 1985, o Brasil terminou o ano fora do pódio nos campeonatos mundiais – em 10º lugar no Mundial Sub-18 e em 5º no Mundial Sub-20. Além disso, ficou na 5ª colocação no Sub-23. (Vale lembrar que o time sub-18 ficou bem distante das primeiras colocações pela segunda vez consecutiva, já que em 2015 encerrou sua participação no campeonato em 11º lugar). Como se não bastasse, nas semifinais do Sul-Americano, disputado este ano na cidade de Valledupar, na Colômbia, a equipe sub-18 foi massacrada pelo Peru por 3 sets a 0, batendo um recorde extremamente negativo, já que a seleção nunca havia ficado de fora da final no torneio, onde terminou em 3º lugar. Este resultado demonstra que a perda da hegemonia não é apenas em nível mundial, mas também "local".
Assim, diante deste quadro desanimador, algumas perguntas têm sido colocadas: em que estado se encontra a base feminina? Por que o Brasil não está conseguindo lapidar e revelar novos talentos competitivos que possam ser, com o tempo, aproveitados para abastecer a seleção principal? Quais são as causas da crise nas categorias de base?
Segundo o treinador da seleção sub-20, Wagner Copini, o Wagão, a escassez de investimentos nos clubes formadores tem prejudicado o aparecimento de novos talentos nas divisões de base. "Penso que a diminuição do número de clubes que investem na base tem dificultado o surgimento de novas atletas. Acredito que essa diminuição esteja ligada à situação econômica do país", destaca. O técnico Mauricio Thomas, que atualmente comanda o Vôlei Balneário, de Santa Catarina, e que trabalhou durante catorze anos com as seleções de base – como assistente e como treinador –, obtendo três títulos mundiais e um vice-campeonato, corrobora, mas observa que, além dos clubes, a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) também não consegue fazer a sua parte da maneira mais adequada: "Eu acho que a CBV dá oportunidades às atletas da seleção brasileira durante três meses. São vinte jogadoras convocadas dentro de um universo de centenas. Acredito que o principal problema do voleibol brasileiro não é só o fato de a CBV não estar dando oportunidades, mas sim os clubes que passam por muitas dificuldades financeiras e não têm mais condições de sustentar os custos elevados das categorias de base".
Por isso, Mauricio Thomas vê com bons olhos a iniciativa da CBV de promover, em parceria com a Confederação Brasileira de Clubes (CBC), o Campeonato Brasileiro Interclubes das categorias de base. Criado no ano passado, o torneio teve a participação de 25 clubes de dez estados brasileiros (Minas Gerais e Paraná foram as unidades federativas com mais representantes, com seis clubes cada). Em sua segunda edição, a competição, que termina em dezembro e conta com sete categorias diferentes, tem como objetivo incentivar o desenvolvimento de jovens promessas. Para ele, que também busca implantar e desenvolver a mesma filosofia de valorização da base no Vôlei Balneário, é imperativo que as atletas em formação tenham a possibilidade de jogar mais. "Eu acho que a ideia do Campeonato Brasileiro Interclubes das categorias de base seja muito boa no momento, pois as melhores atletas do país não estão nas seleções dos seus estados e sim nas bases dos clubes do Brasil", pontua.
Em relação à metodologia de trabalho desenvolvida com as seleções de base, Wagão considera apropriada. "Temos todo apoio e suporte da CBV. Trabalhamos muito no aprimoramento técnico individual, físico e mental das atletas, e enfatizamos também o entendimento tático do jogo", aponta. A ex-levantadora Fofão, campeã olímpica em 2008 e integrante do Hall da Fama de Vôlei, no entanto, demonstra preocupação. Para ela, não é oferecida às meninas a possibilidade de atuar mais para que, então, possam aperfeiçoar sua formação. "Eu acredito que a crise na CBV afetou muito essas categorias em todos os sentidos. Hoje uma atleta mais jovem precisa decidir se continua jogando ou se vai seguir novos caminhos. Se tivessem mais oportunidade para jogar [teriam mais chances] de crescer. É preciso motivá-las para que elas deem continuidade na fase adulta", frisa.
Técnico Mauricio Thomas, atualmente no Vôlei Balneário, trabalhou durante catorze anos com as categorias de base (Foto: Divulgação/CBV)
De acordo com a ex-levantadora da seleção brasileira, as categorias de base estão enfrentando muitas dificuldades e isso se reflete nos resultados. Também para ela, os clubes precisam testar as meninas, colocando-as para jogar e se desenvolver. "Eu sinto que este processo [de renovação] está lento e poucas jogadoras da base hoje em dia conseguem prosseguir. Se você levar em conta que em um grupo de doze atletas, uma ou outra se destacam ou dão continuidade, [você vai ver que] é muito pouco. Eu sinto que as categorias de base precisam jogar mais, ter maior rodagem para estarem preparadas quando chegarem ao adulto. Elas disputam poucas competições no ano e quando vão para os seus clubes aquelas que têm mais condições na maioria das vezes são reservas, com poucas chances de atuar. O que muitas vezes faz com que a atleta perca a motivação e acabe até parando de jogar", complementa Fofão.
O treinador Mauricio Thomas concorda que há enormes entraves ao processo de desenvolvimento e formação das jovens, e justifica os fracassos recorrentes do Brasil nos campeonatos mundiais da base. "O Brasil sempre revelou grandes atletas. Às vezes, essas jogadoras têm muito potencial, altura, biotipo ideal, mas elas não possuem experiência de jogo para representar o país em nível mundial. Quando elas vão jogar o Mundial, elas já chegam em desvantagem pelo número de jogos. Enquanto lá fora as jogadoras já atuaram em trinta, quarenta partidas em nível internacional, contando Campeonato Europeu e outras competições, as brasileiras ainda não jogaram nada. Elas não têm a oportunidade de defender o Brasil antes da competição. Então elas chegam ao torneio com menos bagagem, menos rodagem, e o poder de decisão acaba diminuindo. Antes, a gente ficava concentrado durante três ou quatro meses, fazendo excursões pela Europa, preparando essas meninas para elas chegarem com mais experiência ao Mundial. Hoje a gente não tem mais essa possibilidade em função dos custos. Isso acaba prejudicando os resultados. Nós temos grandes treinadores na base, temos potencial humano, mas nos falta experiência de jogo", ressalta.
Para ele, já que não há aporte financeiro suficiente para que as comissões técnicas e as jovens atletas possam desenvolver o melhor trabalho, excursionando pela Europa, as meninas precisariam atuar em nível competitivo também na Superliga e na seleção principal. "Eu vejo que nós tínhamos que dar mais chances às atletas que surgem na base. Oferecer oportunidades na seleção brasileira adulta, nos campeonatos da Superliga. Mas, o formato das competições e também das seleções brasileiras acaba dificultando o aparecimento dessas jovens jogadoras nas seleções principais", lamenta.
Para a ex-jogadora Fofão, falta oportunidade para as jovens atletas se desenvolverem (Foto: Alexandre Loureiro/Inovafoto/CBV)
Antes de retornar ao Brasil para trabalhar em Santa Catarina, Thomas passou pelo multicampeão VakifBank, da Turquia, na temporada passada, onde atuou como assistente do prestigiado técnico italiano Giovanni Guidetti. Com essa experiência, ele pôde observar mais de perto o trabalho que vem sendo realizado lá fora, propiciando o crescimento de outras seleções. "Um dos pilares do vôlei brasileiro sempre foi o trabalho de base, o que o mundo passou a copiar. A gente sabia que um dia isso iria acontecer, que quando eles passassem a dar a importância que nós damos à base, a gente iria ficar para trás pelo material humano e pelo dinheiro que eles têm. (…) A Itália e a Turquia são exemplos. A Holanda e os EUA também vêm crescendo porque todos passaram a valorizar essas categorias e, com isso, eles estão tendo grandes jogadoras com enorme potencial. Enquanto o Brasil vem encontrando grandes dificuldades", ratifica ele.
Na lista destas jovens estrelas que já figuram no cenário internacional entre as melhores do mundo, destacam-se a chinesa Ting Zhu, já campeã olímpica nos jogos do Rio aos 23 anos e jogadora do VakifBank, onde Thomas trabalhou, a já mencionada oposta italiana Paola Egonu, de 19 e a sérvia Tijana Boskovic, medalhista de prata na Rio 2016 e campeã mundial com a seleção dos Bálcãs aos 21 anos. Fofão afirma que todas estas atletas tiveram a chance de atuar em alto nível para desenvolver o seu potencial. "Essas jogadoras têm a possibilidade de disputar competições fortes nos seus países ou saem muito novas para jogar. Isso faz com que elas adquiram maturidade rapidamente. Você pode ver uma atleta totalmente crua em um ano e no ano seguinte a evolução. (…) Elas estão sempre disputando competições com as melhores do mundo", salienta a ex-levantadora.
Aos 19 anos, a oposta vice-campeã mundial Paola Egonu é considerada uma das melhores jogadoras do mundo e a maior revelação recente do vôlei italiano (Foto: Divulgação/FIVB)
Thomas concorda e lança luz sobre a importância de valorização das características da escola brasileira de voleibol. "Essas atletas sempre se destacaram nas categorias de base das suas seleções. Mas nós também tivemos jogadoras se sobressaindo na base. A Natália, por exemplo, foi a única no mundo campeã mundial infanto e juvenil. Além da Natália, a Erika, a Fabiana, a Thaisa. O Brasil, no momento, não tem essa jogadora que os outros países possuem. Mas o inverso também já aconteceu. (…) Eu acho que nós não teremos essa jogadora por um bom tempo, mas o Brasil sempre se prevaleceu pelo conjunto, sempre fomos muito equilibrados. O voleibol brasileiro nunca dependeu de uma atleta. Essas jogadoras agora estão decidindo, mas nós conseguimos grandes resultados anulando muitos desses talentos com o trabalho de equipe. Sempre tivemos a filosofia do conjunto, do time", diz.
Desta maneira, para que não fique para trás, deixando de lado uma história gloriosa construída às custas de muito trabalho e talento, é preciso que o Brasil reveja o caminho que tem seguido na lapidação das jovens atletas, investindo em um programa sério de formação. Por outro lado, como ressaltou o técnico Wagão, é necessário ter "tempo e paciência" para que novas joias possam surgir. Além disso, vale salientar que torcida e imprensa também necessitam, ao compreender o momento de crise por que passam as categorias de base nacionais e, concomitantemente, o crescimento das equipes internacionais, ter calma para perceber que esse processo de formação e recuperação da base pode ser longo, fazendo com que a seleção principal passe alguns anos sem ganhar títulos. Afinal, para alcançarem o patamar atual, a campeã olímpica China, a campeã mundial Sérvia e a vice Itália também passaram por momentos de incerteza em que tiveram que fazer investimentos, rever conceitos e mudar o rumo. Esperamos que o mesmo aconteça com o voleibol brasileiro.
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Sobre a autora
Carolina Canossa - Jornalista com experiência de dez anos na cobertura de esportes olímpicos, com destaque para o vôlei, incluindo torneios internacionais masculinos e femininos.
Sobre o blog
O Saída de Rede é um blog que apresenta reportagens e análises sobre o que acontece no vôlei, além de lembrar momentos históricos da modalidade. Nosso objetivo é debater o vôlei de maneira séria e qualificada, tendo em vista não só chamar a atenção dos fãs da modalidade, mas também de pessoas que não costumam acompanhar as partidas regularmente.