Celebridades, times mistos e escândalo: o vôlei já chamou a atenção nos EUA
Sidrônio Henrique
05/11/2017 06h00
A International Volleyball Association durou de 1975 a 1980 com equipes mistas (fotos: Reprodução/Internet)
A cantora Diana Ross estava na primeira fila. O cantor Marvin Gaye também apareceu. Vários pesos-pesados da indústria musical e cinematográfica marcaram presença. Havia exibição pela TV em rede nacional. Não, não estamos falando de nenhuma cerimônia de entrega de prêmios em Hollywood, mas de voleibol… E nos Estados Unidos. Ali na Califórnia, a duas horas ao sul da meca do cinema, mais precisamente em San Diego, tinha início uma liga que quase catapultaria o vôlei a um status jamais imaginado entre os americanos. A partida reunia San Diego Breakers e El Paso-Juarez Sol – terminou com o placar de 3-2 para os anfitriões. Começava a International Volleyball Association (IVA).
O ano era 1975. Se você não sabe ou não lembra o que Ross ou Gaye representavam naquele período, dois nomes ligados ao soul, R&B e pop, imagine astros de primeira grandeza dos dias atuais sentados em um ginásio vendo um jogo de voleibol.
A IVA não concluiria sua sexta temporada, em 1980, afundando em problemas financeiros e com dois de seus principais personagens envolvidos com o tráfico de drogas. Porém, antes de sucumbir, mostrou que os EUA poderiam gostar para valer da modalidade.
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A liga era mista, duas mulheres tinham que permanecer entre os seis, com a missão de passar e defender (precursoras do líbero). Não havia rotação, as jogadoras estavam sempre no fundo de quadra com o levantador. Diversos atletas estrangeiros se sentiram atraídos pela chance de tentar a sorte nos EUA e foram para lá ao longo dos anos, incluindo vários brasileiros.
"Foi muito bom enquanto durou", relembra Luiz Eymard, craque do Minas Tênis Clube e da seleção brasileira, que atuou na IVA de 1976 a 1980. "Foi ali que finalmente tive a chance de ter contato com o esporte profissional, uma organização e uma estrutura que eu não conhecia até então", diz Bebeto de Freitas, também com passagem pela seleção, jogador e técnico na IVA de 1977 a 1980, e que mais tarde, como treinador, levaria o Brasil a conquistar a prata no Mundial 1982 e na Olimpíada 1984, além de conduzir a Itália ao título do Mundial 1998.
Mas o que foi exatamente essa liga, como nasceu e por que não se sustentou? O Saída de Rede conta para você.
Encanto pela modalidade
Em 1972, o americano David Wolper havia sido contratado para realizar o filme oficial dos Jogos Olímpicos de Munique. Ele ficou encantado com o vôlei. Produtor em Hollywood, Wolper era conhecido pela versão original de "A Fantástica Fábrica de Chocolate", lançada no ano anterior. De volta aos EUA, procurou os amigos Berry Gordy e Barry Diller. O primeiro era um empresário do ramo musical, famoso por ter criado a gravadora Motown, que tinha entre os seus contratados os já citados Gaye e Ross, além de Stevie Wonder, Martha Reeves, Michael Jackson e Lionel Richie, numa lista muito mais extensa. Diller era o chefão do estúdio Paramount Pictures na época. A ideia de Wolper era convencer os amigos a fazer do voleibol a nova mania americana. Juntos, os três embarcaram na aventura.
No Mundial 1974, disputado no México, um dos principais assuntos nos bastidores era a criação de uma liga mista nos EUA, que começaria no ano seguinte. "Eu fui sondado e tratei de convencer o José Henrique (Lopes), um dos nossos levantadores na seleção, a ir comigo, não queria ir sozinho", conta Lino de Melo Gama, um atacante de saída de rede que se tornaria uma das figuras mais populares da IVA, jogando de 1975 a 1979.
Prestígio
A liga contou com cinco equipes na sua primeira temporada. O trio Wolper-Gordy-Diller estava por trás da empreitada, bancando os custos, segundo Doug Beal, ex-diretor executivo da USA Volleyball (USAV), organização que administra a modalidade no país. A competição cresceu um pouco e chegou a ter sete times num mesmo ano. Com figurões da área de entretenimento envolvidos, não foi difícil atrair a mídia. As partidas tinham bom público – no jogo decisivo da primeira temporada, oito mil pessoas lotaram um ginásio – e não raro eram transmitidas pela TV. A liga era disputada de maio a setembro, caracterizando o vôlei como um esporte de verão.
A IVA chamou a atenção de atletas ao redor do mundo, mas por não ser reconhecida pela Federação Internacional de Vôlei (FIVB) e esta ameaçar banir de seus torneios qualquer jogador que tomasse parte na liga americana, a maioria desistiu. Naquele tempo, atletas profissionais não podiam disputar campeonatos de modalidades amadoras. Mas tinha quem já houvesse cumprido seu ciclo na seleção nacional e recebesse proposta de um dos times. Foi o caso do atacante polonês Edward Skorek, campeão mundial em 1974 e olímpico em 1976, que deu mais credibilidade à IVA. Outro polonês, o levantador Stanislaw Gosciniak, campeão e MVP do Mundial 1974, também teve passagem pela liga. Os dois estão no Hall da Fama do vôlei.
Doug Beal foi um dos que viram tudo de perto, mas sem tomar parte. Ainda jogava pela seleção dos EUA quando a IVA começou e não entrou em nenhuma equipe, como ele relata, na esperança de ir aos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976 – os americanos acabaram não conseguindo a vaga. Parou de jogar devido a seguidas lesões e, em 1977, tornou-se técnico da seleção masculina dos EUA.
Brasileiros na IVA
Antônio Carlos Moreno, maior nome do voleibol brasileiro nos anos 1970, chegou a ser sondado, mas como não queria deixar a seleção, pela qual jogaria até 1980, recusou o convite. "Tinha compromissos aqui e não queria abrir mão de representar o Brasil".
Bebeto de Freitas deixou a seleção após Montreal 1976 e, no ano seguinte, foi para a liga americana, onde acumulou as funções de técnico e levantador no Santa Barbara Spikers. "Nas minhas últimas temporadas como jogador no Brasil, antes de ir para os EUA, eu já vinha trabalhando também como treinador. Esse período na IVA foi de extrema importância para o meu crescimento como técnico", diz Bebeto, que de 1981 a 1984, já no Brasil, comandou aquela que ficaria conhecida como Geração de Prata, responsável pelo boom da modalidade no país. Ele está no Hall da Fama.
O atacante Fernandão, integrante da Geração de Prata, jogou na IVA e só pôde voltar à seleção com o fim da liga americana – não participou da Olimpíada de Moscou, em 1980, por exemplo.
"Eu não sabia muito bem o que veria por lá. Comecei na segunda temporada, mas aqui no Brasil quase não chegavam informações sobre a primeira. Eu queria muito ir, achava que poderia acrescentar algo ao meu jogo e também a mim, como pessoa. No final das contas, foi uma experiência que não tem preço, algo fantástico", recorda Luiz Eymard, que aproveitou os quatro anos nos EUA para estudar marketing na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).
Caveman
Eymard e Bebeto estavam entre os melhores atletas da IVA, mas quem marcou época foi Lino de Melo Gama. "Ele não era o jogador mais técnico, mas era sem dúvida o mais popular", afirma Doug Beal. Com barba e cabelos longos, Lino ganhou dos americanos, na abertura da liga em 1975, a alcunha de Caveman (homem das cavernas). "Rapaz, poucas vezes eu vi um apelido cair tão bem numa pessoa", diverte-se Luiz Eymard, que jogaria uma de suas cinco temporadas ao lado de Lino. "Era um cabelo longo, mal cortado, e uma barba desgrenhada, parecia mesmo um homem das cavernas. O Lino era uma figura divertidíssima, todo mundo o adorava", completa.
Uma reportagem de 1975 sobre a IVA da revista Sports Illustrated, a bíblia americana do esporte, dizia que o vocabulário de Lino consistia em palavrões impublicáveis e a constante repetição de "okay". "O Caveman era muito carismático e ajudava a tornar a IVA mais atrativa", diz Beal. Lino aprendeu rápido o inglês, mas enquanto morou nos EUA manteve o estilo, digamos, desalinhado. Retornou ao Brasil em 1980, formado em administração de empresas pela Universidade do Texas, onde também era técnico e jogador do time de futebol (o nosso, não o deles).
"Eu me divertia muito com tudo aquilo. Essa história de Caveman me rendeu um dinheiro extra. Como eu era popular, às vezes me convidavam para desfiles de moda, entravam aquelas modelos bonitas e eu vinha vestido de pele de tigre, com um tacape na mão, como um homem das cavernas. Na universidade, mais de uma vez, me pediram para cortar o cabelo e a barba, mas eu dizia 'de jeito nenhum'", comenta Lino, irmão mais velho do craque de futebol Júnior, que fez história nos anos 1980 pelo Flamengo e integrou a mítica seleção de Telê Santana na Copa de 1982, tendo jogado também a de 1986. Hoje, aos 65 anos, o antigo Caveman tem um visual mais comportado e ainda joga voleibol nas areias de Copacabana. "Amo vôlei, tá no sangue, não consigo parar de jogar".
Astro da NBA no voleibol
A IVA chamou a atenção de um dos maiores astros de todos os tempos da NBA, a liga americana de basquete. Wilt Chamberlain, já aposentado da bola ao cesto, se aventurou na liga de voleibol desde o seu início. Adorava a modalidade e, conforme Doug Beal, jogava bem. Não era apenas um atleta, mas um dos investidores, utilizando seu dinheiro para promover o vôlei. Atuou em três equipes da IVA e tornou-se presidente da associação de 1977 a 1978. Chamberlain morreria aos 63 anos, em 1999, vítima de um ataque cardíaco.
Em 1979, a liga sentia o efeito da saída de alguns investidores. O trio inicial, por exemplo, havia deixado o voleibol de lado. Várias equipes tinham fechado as portas. Outras até começaram, mas com orçamentos mais modestos. A mídia já não dava a mesma atenção.
Tráfico de drogas
Naquele ano, a IVA sofreu um baque. Uma partida entre o Denver Comets e o Albuquerque Lasers foi interrompida pela polícia, que prendeu 17 pessoas, incluindo os irmãos Robert e David Casey, donos do Comets, acusados de tráfico de maconha e cocaína. Os dois eram figuras-chave na liga pelo aporte financeiro que faziam. O jogo continuou, mas a IVA nunca mais foi a mesma. O escândalo ganhou destaque em todo o país, com matérias nas principais redes de TV e em jornais de prestígio como o New York Times e o Los Angeles Times. O vôlei ainda levava um bom público aos ginásios, porém já não empolgava tanto longe das arenas.
Os dirigentes da IVA pretendiam pegar carona na Olimpíada de Moscou, em 1980, para divulgar mais a modalidade, quando partidas da seleção feminina, que estava classificada e tinha um time forte, seriam transmitidas em rede nacional. Mas no dia 21 de março daquele ano, o então presidente americano, Jimmy Carter, anunciou o boicote aos Jogos Olímpicos como represália à intervenção da União Soviética no Afeganistão. Os EUA foram seguidos por outros 68 países.
A não ida dos EUA à Olimpíada de 1980 foi a gota d'água. O escândalo de 1979 afugentou patrocinadores e a pressão da FIVB, que via a IVA como uma liga pirata, sempre foi uma ameaça. Junte tudo isso e você tem o fim melancólico de uma proposta promissora. A temporada de 1980 sequer foi concluída.
Lamento
"Foi uma pena, mas vários fatores minaram a IVA. Talvez ela tenha surgido cedo demais, talvez precisasse de um pouco mais de suporte, organização, antes de ser lançada", pondera Doug Beal. "Houve outras três tentativas posteriores, mas não chegaram perto do sucesso obtido pela IVA", relembra o ex-treinador, campeão olímpico em Los Angeles 1984.
Durante o período em que foi diretor executivo da USA Volleyball, de janeiro de 2005 a janeiro de 2017, Beal tentou criar uma liga, mas não conseguiu atrair patrocinadores e esbarrou em problemas como a logística. "Mesmo a IVA, com seu sucesso nos primeiros anos, era mais forte no sudoeste do país. Pouca gente nas grandes cidades do norte, como Nova Iorque, Chicago, Detroit e Boston falava sobre voleibol. Houve um time em Seattle, mas durou apenas duas temporadas", cita.
Os EUA terão nova liga?
Seu sucessor na USAV, Jamie Davis, chegou falando em criar uma liga profissional, que seria implantada antes da Olimpíada de Tóquio, em 2020, mas depois recuou. O SdR procurou a USA Volleyball para saber a quantas anda esse projeto. A organização, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu que "a diretoria está trabalhando para transformá-lo em realidade" e que "não vai dar detalhes sobre o tema até que haja algo concreto".
Citando Luiz Eymard, "foi muito bom enquanto durou". Por um breve período, os EUA se aproximaram do vôlei, esporte que mais tarde daria a eles, somente no indoor, dez medalhas olímpicas, sendo três de ouro, a partir de 1984. A ideia inicial do trio Wolper-Gordy-Diller não vingou, mas como diria Lino, o Caveman, a IVA acabou sendo "okay".
Sobre a autora
Carolina Canossa - Jornalista com experiência de dez anos na cobertura de esportes olímpicos, com destaque para o vôlei, incluindo torneios internacionais masculinos e femininos.
Sobre o blog
O Saída de Rede é um blog que apresenta reportagens e análises sobre o que acontece no vôlei, além de lembrar momentos históricos da modalidade. Nosso objetivo é debater o vôlei de maneira séria e qualificada, tendo em vista não só chamar a atenção dos fãs da modalidade, mas também de pessoas que não costumam acompanhar as partidas regularmente.