Karpol, 80 anos de uma lenda do vôlei
Sidrônio Henrique
01/05/2018 06h00
"Quando perguntam minha profissão, é com orgulho que digo 'professor"' (fotos: FIVB e Reprodução/Internet)
Naquela noite de 29 de setembro de 1988, em Seul, Coreia do Sul, tudo parecia fora de controle para a seleção de vôlei feminino da União Soviética. Na disputa da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, o time comandado pelo técnico Nikolay Karpol estava perdido em quadra diante das aguerridas peruanas. As sul-americanas lideravam a partida por dois sets a zero e ganhavam o terceiro por 12-6 – as parciais iam até 15 pontos. Foi então que aconteceu o pedido de tempo mais comentado da história da modalidade e que marcou para sempre a imagem de Karpol. Ele exortou suas atletas a lutarem e deu início a uma das viradas mais incríveis na história do esporte.
Nikolay Karpol completa 80 anos neste 1º de maio e segue na ativa, à frente do Uralochka, em Ekaterimburgo, na Rússia, clube que treina desde 1969, quando começou uma carreira que soma 49 anos. Os berros para suas jogadoras em diversos torneios ecoam na memória dos fãs de voleibol, mas o técnico vai muito além de gritos e expressões faciais raivosas.
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Nikolay Vasiliyevich Karpol nasceu em 1938 em Brzeznica (hoje Bereznitsa), na época parte da Polônia, mas que na década seguinte seria incorporada pela União Soviética como uma cidade da Bielorrússia (atualmente Belarus). Adolescente, foi com a família para Nizhny Tagil, na Rússia, até se mudar de vez para Ekaterimburgo no início da vida adulta. Desde o fim da URSS, em 1991, tem dupla cidadania: bielorrussa e russa.
Praticava voleibol na juventude, mas ganhava a vida como professor. Lecionava matemática, física e astronomia no ensino médio. Antes, enquanto ainda era estudante, em 1959, criou um time de vôlei feminino que ele orientava na própria escola. Em 1966, ajudou a fundar o Uralochka, onde jogava sua futura esposa, Galina Duvanova, com quem se casaria naquele mesmo ano. Assumiria a função de técnico do clube três anos depois e o voleibol passou a ser sua única atividade profissional.
Nada de palavrões
Ele garante que nesses anos todos como técnico nunca disse um palavrão e, bem humorado, costuma repetir que jamais soube de nenhum torcedor que tenha deixado o ginásio por causa de seus gritos. Na final de 1988 contra o Peru, no famoso pedido de tempo, Karpol se virou para a ponta Irina Smirnova, que havia sido criada pela avó e sempre falava nela, e perguntou, aos berros, o que a atacante faria quando voltasse para casa e encontrasse a avó depois de perder a final. Repetiu a pergunta. A ponteira caiu em prantos. Porém, passou a jogar muito melhor.
Karpol é reconhecido pela maioria das grandes atletas que, sob suas ordens, vestiram a camisa da URSS ou da Rússia, após a dissolução da União Soviética. A universal Lioubov Sokolova, que quase teve sua carreira encerrada por causa de uma disputa na justiça com o treinador em 2002, reconheceu depois que ele foi fundamental na sua vida de atleta.
A levantadora Irina Kirillova afirma que sem Karpol o voleibol feminino russo não teria mantido sua grandeza. A meio de rede Elizaveta Tishchenko faz questão de enfatizar que o treinador elevou o nível do seu jogo.
Críticos
Não faltam críticas ao estilo ortodoxo dele e há até quem minimize suas duas medalhas de ouro olímpicas. Karpol levou a URSS ao ponto mais alto do pódio em Moscou 1980 e em Seul 1988, duas edições dos Jogos Olímpicos marcadas pelo boicote. O da primeira, em massa, liderado pelos Estados Unidos. No segundo ouro, as soviéticas não tiveram que medir forças com Cuba, grande favorita, que não foi a Seul por discordar do tratamento dado pela Coreia do Sul à vizinha do Norte.
Os críticos também apontam falhas em seu sistema defensivo, com ênfase apenas no alto bloqueio e uma cobertura frágil que permitia muitas vezes que largadas fáceis de defender caíssem.
Reclamam até do fato de ele aceitar que suas levantadoras joguem com bolas altíssimas, sem muita criatividade. Disso Nikolay Karpol se defendeu dizendo que trabalha com o que tem. De fato, quando contava com Kirillova, a quem ele comparou diversas vezes a uma bailarina e chama de "a maior levantadora de todos os tempos", sua equipe tinha mais variação e velocidade. Algo parecido, com menos brilhantismo, pôde ser visto quando ele contava com Elena Vassilevskaia como armadora. Fora isso, tome bola no teto com atletas medíocres na posição como Tatiana Gratcheva ou Marina Sheshenina.
Treinador teve problemas com algumas atletas, que inclusive se recusaram a jogar, como Vassilevskaia
Desentendimentos
Vassilevskaia entrou para o time das que se desentenderam com o técnico a ponto de não mais voltar – depois da prata em Sydney 2000. A ex-ponta/oposta Liudmila Malofeeva, com passagem pela seleção russa após a saída do treinador, jogou pelo Uralochka e não tem boas lembranças de Karpol. "Ele divide as atletas em três categorias: suas favoritas, as medíocres e as que ele despreza", comentou Malofeeva à imprensa russa, dizendo ainda que ele a tratava como alguém do terceiro grupo.
A queda da URSS em 1991, o colapso do comunismo no leste europeu e o impacto dessa mudança no esporte irritavam o técnico. "Tudo mudou, até a motivação das atletas, agora é só dinheiro, dinheiro… Com a chegada do capitalismo, vieram os empresários. Há muita interferência, tivemos que mudar tudo, até a forma de nos aproximarmos das jogadoras, agora é muito diferente dos tempos da URSS e não mudou para melhor", contou numa entrevista concedida na década passada.
Jogo ortodoxo
Nikolay Karpol admite que gosta de ter uma ou duas jogadoras como referência nas equipes que treina. Em mais de uma oportunidade, contou que costuma trabalhar com atacantes desde quando ainda são jovens e encaixá-las em seu plano de jogo. Foi assim, por exemplo, na seleção russa de Atenas 2004, que girava em torno da oposta Ekaterina Gamova e da ponteira Lioubov Sokolova, talhadas durante anos pelo irascível treinador.
É possível fazer uma longa lista de grandes atacantes cujo desenvolvimento teve a participação de Karpol. Além de Gamova e Sokolova, estiveram sob sua batuta Elena Godina, Evgenia Artamonova, Tatiana Menshova, Elizaveta Tishchenko, Irina Smirnova, Tatiana Sidorenko e Valentina Oguienko, entre outras. Ele ajudou também a formar a levantadora Irina Kirillova, que começou a ser treinada por ele quando tinha apenas 14 anos.
Professor
Karpol não pensa em parar. Em 2019 completa meio século de carreira. Ele diz que 50 anos de atividade profissional parece um número bom, mas deixa no ar que pode ir além disso.
Quando querem saber qual é a profissão dele, nunca responde técnico de voleibol. "Eu sou um professor. Foi assim que comecei a trabalhar e ainda é assim que me vejo. Além disso, ser professor é algo muito nobre. Por isso, quando perguntam minha profissão, é com imenso orgulho que digo 'professor'".
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Momentos de Nikolay Karpol:
Defendendo Zé Roberto e Mari
Além da virada na final de Seul 1988, Karpol também ficou conhecido por outra, 16 anos mais tarde, na semifinal de Atenas 2004. A vítima desta vez foi o Brasil. Depois do jogo, durante a entrevista coletiva, o técnico José Roberto Guimarães era massacrado pela imprensa brasileira, que tentava entender o inexplicável: a derrota após sete match points desperdiçados.
Karpol pegou o microfone e pediu que tivessem mais respeito por Zé Roberto, pois ali estava um campeão olímpico (já havia conquistado o ouro com a seleção masculina em Barcelona 1992). O russo também rebateu as críticas à oposta Mari, que vinha sendo injustamente apontada como a grande responsável pelo resultado. "O voleibol é um esporte coletivo e essa menina jogou absurdamente bem numa semifinal olímpica, não é justo criticá-la", enfatizou Karpol. Uma das raras vezes em que saiu em defesa de adversários.
Dançando com Márcia Fu
Forli, Itália, 1988. URSS e Brasil haviam ficado com as duas vagas do pré-olímpico, superando as donas da casa, as canadenses e as neozelandesas. A organização do torneio promoveu uma festa numa boate após o encerramento. Lá estavam as equipes. A então central Márcia Fu, 19 anos, decidiu chamar o carrancudo técnico soviético para dançar. Karpol aceitou, sob os olhares atônitos de suas atletas. Dizem que a dupla Karpol e Fu fez sucesso na pista.
Karpol e o bom senso
A Rússia enfrentava a Holanda pelas quartas de final em Atlanta 1996. Quase no final da partida, que as russas venceriam por 3-1, a ponteira Evgenia Artamonova desmaiou, exausta com tantos ataques. Apreensão em quadra, Karpol chama uma substituta, mas o segundo árbitro queria que Artamonova, que estava desacordada, viesse para segurar a placa. O treinador começou a rir do juiz auxiliar e a bater palmas. No final, prevaleceu o bom senso.
Sobre os equívocos
"Sim, cometi erros, mas não grandes erros. Talvez alguns pequenos. Eu certamente apostei em jogadoras (sem citar nomes) que não deveria. Errei na preparação para alguns jogos, mas tenho orgulho em dizer que jamais errei ao tentar preparar alguém para ser uma boa pessoa".
Os fãs
"Hoje em dia os fãs vão a um jogo como quem vai a um show. Muitos sequer entendem voleibol. Tem gente que nem sabe quantos toques são permitidos por time. Muitas pessoas que estão trabalhando nas federações ao redor do mundo não são profissionais e isso resulta em falhas na atração de novos fãs e de fazer o jogo acessível a quem já tem interesse. Os japoneses já foram muito bons em atrair fãs, hoje em dia nem tanto. Brasil e China estão fazendo um trabalho muito bom nesse sentido. A Rússia até que vai bem. A melhor nisso é a Polônia, que faz algo fenomenal".
Hall da Fama
"Estar ali (ele entrou em 2009) é o reconhecimento pelo que tenho feito no voleibol. Eu diria que 99% das pessoas que merecem estar no Hall da Fama já estão ali. Fazer parte desse universo é uma honra muito grande para mim".
Estragando a despedida de Lang Ping
Além de técnica campeã olímpica, Lang Ping foi uma das maiores jogadoras de todos os tempos. Acostumada com o alto do pódio, já estava aposentada quando, em 1990, para a disputa do Mundial na China, o governo daquele país pediu que voltasse. Heroína nacional, ela seria o grande trunfo numa seleção que vinha patinando.
Lang Ping retornou. As cubanas Mireya Luis e Magaly Carvajal estavam contundidas, mas os chineses não contavam com a URSS de Karpol, que colocou água no chope das anfitriãs. Diante de um ginásio lotado em Pequim, as comandadas de Nikolay Karpol fizeram 3-1 sobre a China, deixando Ping com a prata em sua despedida definitiva.
Biografia
Em 2010, o croata Tomislav Birtic lançou, em inglês, a biografia Karpol: Lunatics – That's what I need ("Karpol: Lunáticos – É disso que preciso", numa tradução livre). O livro conta a história do técnico e traz algumas das ideias de Karpol sobre o esporte que o consagrou.
Derrotas de virada em finais olímpicas
"Em Sydney foi difícil fazer algo depois que as cubanas entraram no jogo. Já em Atenas a FIVB trabalhou contra a gente, não queria que ganhássemos", disse Karpol sobre as duas derrotas de virada, por 2-3, nas finais olímpicas de Sydney 2000 (contra Cuba) e de Atenas 2004 (diante da China). Ele não explicou por que ou quem queria a derrota russa na Grécia. Na época, a FIVB era presidida pelo mexicano Ruben Acosta.
Morte do filho
Em 1993, seu único filho, Vasily, 25 anos, morreu ao lado da esposa em um acidente de carro. Nikolay Karpol e sua mulher, Galina, passaram a criar o neto, que tinha 4 anos.
Condecoração
Na semana passada, Nikolay Karpol foi condecorado pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, como "Herói do Trabalho". A honraria é concedida aos cidadãos que se destacam em atividades públicas, elevando o nome do país. O técnico recebeu outras cinco condecorações ao longo da carreira, incluindo a Ordem por Mérito à Pátria.
Colecionador de títulos
Karpol é bicampeão olímpico (1980 e 1988) e três vezes medalha de prata (1992, 2000 e 2004), tendo sido treinador em seis edições dos Jogos Olímpicos – saiu sem medalha apenas em Atlanta 1996, quando a Rússia ficou na quarta colocação. Campeão mundial em 1990, foi sete vezes campeão europeu e tricampeão do Grand Prix.
Comandou a URSS de 1978 a 1982 (demitido após um decepcionante sexto lugar no Mundial) e de 1987 a 1991. Seguiu à frente da seleção feminina em 1992 com a Comunidade dos Estados Independentes (CEI) e depois com a Rússia de 1993 a 2004. Foi ainda técnico da Belarus no período 2009-2010, mas esbarrou na escassez de material humano.
Com o clube Uralochka, conquistou mais de duas dezenas de títulos nacionais e oito edições da Champions League.
Colaborou Ekaterina Semenova
Sobre a autora
Carolina Canossa - Jornalista com experiência de dez anos na cobertura de esportes olímpicos, com destaque para o vôlei, incluindo torneios internacionais masculinos e femininos.
Sobre o blog
O Saída de Rede é um blog que apresenta reportagens e análises sobre o que acontece no vôlei, além de lembrar momentos históricos da modalidade. Nosso objetivo é debater o vôlei de maneira séria e qualificada, tendo em vista não só chamar a atenção dos fãs da modalidade, mas também de pessoas que não costumam acompanhar as partidas regularmente.