Estudos e norma do COI garantem transexual brasileira no vôlei feminino
Carolina Canossa
21/02/2017 06h00
Brasileira faz tratamento hormonal para perder a força física que caracteriza os homens (Fotos: Reprodução/Facebook)
A autorização dada à transexual brasileira Tifanny Abreu para jogar na Série A2 do Campeonato Italiano feminino agitou o mundo do vôlei. Entre opiniões favoráveis e críticas, a maior dúvida do público é: uma vez que nasceu homem, teria a atacante alguma vantagem física sobre as rivais?
A resposta vem do próprio Comitê Olímpico Internacional (COI): em janeiro do ano passado, a entidade divulgou um documento autorizando homens que mudaram de sexo a participarem de disputas entre mulheres, desde que se identificassem como pertencentes ao gênero feminino e fizessem tratamento hormonal para reduzir a testosterona (hormônio masculino) a menos de 10 nanomol por litro de sangue durante os últimos 12 meses às competições e nos torneios propriamente ditos. Exigência anterior, a cirurgia de troca de sexo não é mais necessária.
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Em entrevista exclusiva ao Saída de Rede, Tifanny contou que passou por todo este processo e, hoje, está dentro das regras. "Tem menina no meu clube com mais testosterona que eu", assegurou a oposta, que atua pelo Golem Software Palmi. Ela afirma que sua condição física atual não é diferente de nenhuma jogadora que atue em alto nível e se destaque pelos golpes potentes. "Antes eu tinha força de homem, mas, depois dos hormônios, passei a jogar como uma boa jogadora, caso da Natália, da Tandara, da Sheilla… Sou só uma jogadora forte, até porque eu sou alta", contou. Apesar de constar na ficha da Liga Italiana com 1,94 m, Tiffany afirma ter, na verdade, 1,90m.
Ex-atleta de voleibol masculino, a brasileira buscou no esporte uma válvula de escape para o receio de não ser aceita como era. Porém, em 2013, após uma depressão, decidiu iniciar o processo de mudança de sexo: "Havia dentro de mim uma pessoa que eu não podia mostrar devido ao medo". À época, decidiu parar de jogar vôlei por não saber que poderia atuar na nova condição, mas mudou de ideia ao ser informada por seu atual empresário que poderia sim se inscrever no feminino.
De volta às quadras, a atacante brasileira diz ter sentido na prática a queda na força física provocada pelo tratamento hormonal. "Meu nível caiu demais, principalmente nos dois primeiros anos. Estava em um clube da Holanda e, depois das férias, os meninos não me reconheciam. Eles diziam: 'Você não está mais pulando e atacando como antes!"', comentou. Como ainda não podia jogar contra mulheres, precisou trabalhar a técnica para encarar rivais fisicamente mais fortes. "Se você for ruim como homem, também será ruim como mulher", opina.
No vídeo abaixo, é possível ver a atuação de Tifanny em sua partida de estreia do Campeonato Italiano A2 (ela é a atleta que veste a camisa número 1 do time de branco). De fato, a oposta não se destaca puramente pela força física, apesar de ter sido a maior pontuadora do duelo.
A brasileira afirma que seu alcance no salto para ataque caiu de 3,50 m quando homem para "3,20 m, no máximo 3,25 m agora" – ainda assim, o nível atual é bastante respeitável para o voleibol feminino. Segundo dados disponibilizados pela Federação Internacional de Vôlei (FIVB) na Olimpíada do Rio, a central Thaísa, de 1,96 m, é a jogadora da seleção brasileira com melhor desempenho neste quesito: 3,16 m. Já a italiana Paola Egonu chega a 3,36m, enquanto a chinesa Ting Zhu vai a 3,27m. Para efeito de comparação, na seleção brasileira masculina, os opostos (mesma posição de Tifanny) Wallace e Evandro atingem respectivamente 3,44 m e 3,59 m, segundo a entidade.
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Preconceito e sonho de estar na seleção
A atacante transexual comemora o apoio recebido da família, amigos e da própria comunidade do vôlei em sua decisão, mas está ciente de que poderá virar um alvo cada vez maior de preconceito conforme se destacar. "Respeito quem me ofende. Amanhã, essas pessoas vão ter que acordar pra trabalhar da mesma maneira que eu tenho, então não vai mudar nada (…) Pra quem falar demais, eu digo: 'Ok, faça um time masculino e pague meu salário do feminino que eu faço sua vontade'. Se nem Jesus agradou todo mundo, como eu vou agradar?", responde.
Aos 32 anos, ela usa os exemplos das centrais Walewska (37) e Juciely (36) para continuar atuando em alto nível e, quem sabe, um dia chegar à seleção brasileira. "Todo mundo sonha! Uma Olimpíada ainda seria possível pra mim", reage a atleta, quando questionada se tem o desejo de ser chamada pelo técnico José Roberto Guimarães.
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Ela, porém, afirma ter propostas para se naturalizar estrangeira. "Seria maravilhoso jogar pelo Brasil, ficaria famosa, reconhecida, teria status… Mas e pro meu futuro? Talvez ter um passaporte europeu é melhor do que eu ficar fazendo visto de trabalho todo ano pra poder jogar aqui", analisa.
Pesquisadora Joanna Harper defende que são os hormônios e não a anatomia que fazem a diferença no desempenho físico (Foto: Reprodução/Sebastien Nagnetti/The Washington Post)
Estudos
Uma vez por mês, Tifanny se submete a uma contagem hormonal para garantir que seu nível de testosterona é condizente com o exigido para atuar no voleibol feminino. Uma pesquisa feita no Providence Portland Medical Center e publicada pelo "Journal of Sporting Cultures e Identies" em 2015 mostra que somente esta medida é suficiente para provocar uma diminuição na massa muscular e na densidade óssea. "Não é anatomia que importa e sim os hormônios", garantiu a autora, Joanna Harper, em entrevista ao jornal "The Washington Post".
Responsável pelo estudo "Fair Play: How LGBT Athletes Are Claiming Their Rightful Place in Sports" ("Fair Play: Como atletas LGBT estão reivindicando os lugares aos quais tem direito no esporte", em tradução livre), Cyd Zeigler concorda: "Todo atleta, transexual ou não, possui vantagens e desvantagens". Já Chris Mosier, que nasceu mulher, mas conseguiu integrar a equipe masculina de triatlo dos Estados Unidos em um Mundial vai além: "Há pessoas de todas as formas e tamanhos. Ninguém desclassifica o Michael Phelps por ele ter braços super longos, pois essa é apenas uma vantagem competitiva que ele possui. Não existe um padrão universal".
Apesar da maior aceitação recente, atletas transgêneros ainda são uma raridade: no Rio 2016, por exemplo, nenhum competidor assumiu publicamente essa condição.
Sobre a autora
Carolina Canossa - Jornalista com experiência de dez anos na cobertura de esportes olímpicos, com destaque para o vôlei, incluindo torneios internacionais masculinos e femininos.
Sobre o blog
O Saída de Rede é um blog que apresenta reportagens e análises sobre o que acontece no vôlei, além de lembrar momentos históricos da modalidade. Nosso objetivo é debater o vôlei de maneira séria e qualificada, tendo em vista não só chamar a atenção dos fãs da modalidade, mas também de pessoas que não costumam acompanhar as partidas regularmente.