Brasil, decime qué se siente
Sidrônio Henrique
27/10/2016 06h00
Bicampeão sul-americano no sub19, campeão no sub21, atual vice-campeão mundial nas duas categorias, adversário duro nas quartas de final na Rio 2016… Não é de hoje que o vôlei masculino da Argentina quer deixar o segundo escalão mundial e entrar para a elite, mas agora, mais do que nunca, eles estão perto de conseguir, tornando-se uma ameaça à hegemonia do Brasil na América do Sul.
Mas há mesmo motivos para que os brasileiros se preocupem com uma seleção que é uma velha freguesa? O Saída de Rede conversou com alguns personagens que conhecem bem a realidade argentina e a conclusão é que é melhor acompanhá-los de perto. Para começar, quem determina a linha de atuação dos treinadores desde a base é o técnico Julio Velasco, o homem que alçou a Itália à condição de potência nos anos 1990 e que tornou a seleção do Irã competitiva no início desta década.
Como o Sada Cruzeiro chegou ao topo do mundo em dez anos?
"A evolução do vôlei masculino argentino é muito boa de uma maneira geral, as condições de trabalho que temos são bastante favoráveis. Em um futuro não muito distante esse trabalho da base tem que se refletir na seleção principal", disse ao SdR Alejandro Grossi, treinador da seleção sub21, que sagrou-se campeã continental domingo passado (23), ao derrotar o Brasil de virada por 3-1, em Bariloche.
Grossi, que foi assistente de Javier Weber na seleção principal, ressalta que essa evolução é fruto de planejamento e continuidade. "É algo que vem ocorrendo há quase dez anos, a partir de um projeto da Federação Argentina (FeVA), que permitiu que as equipes treinassem nas melhores condições e que possam excursionar. Tem a ver com continuidade, seguir um plano. Apesar das mudanças eventuais de treinadores, os resultados vão sendo mantidos ou melhorando. Nos aproximamos do (nível do) Brasil, estamos parelhos na base, estamos buscando a excelência", comentou.
No sub19, eles venceram quatro das últimas cinco edições. Na mais recente, disputada em Lima no início deste mês, surraram os brasileiros em sets diretos. No sub21, a situação não é tão confortável, apesar do inegável talento dos hermanos. À medida que vem a transição para o adulto, outros fatores se impõem, a começar pela carência que os nossos vizinhos enfrentam em algumas posições, por causa da menor quantidade de jogadores disponíveis. No Sul-Americano sub23, por exemplo, o título ficou com o Brasil. Mas o planejamento da FeVA e o olho clínico de Velasco podem suprir essas lacunas.
Atualmente, a Argentina sofre com a ausência de um oposto matador. É de se estranhar, afinal países com muito menos tradição no esporte, como Canadá, Austrália e Bélgica resolveram o problema para essa posição. Na Rio 2016, o titular era o juvenil Bruno Lima, de apenas 20 anos, que ainda apresenta as oscilações típicas da pouca idade, mas é a grande aposta de Julio Velasco. Seu reserva, o veterano José Luis González, 31, chamado de última hora, era um quebra-galho. Até hoje o fã argentino de vôlei guarda na memória seus dois grandes opostos: Raúl Quiroga, uma das estrelas da equipe que foi bronze em Seul 1988 e tio do ponta Rodrigo Quiroga, e mais recentemente Marcos Milinkovic, que brilhou nas duas décadas seguintes e por muitos anos atuou na Superliga.
"Na Argentina não conseguimos ainda encontrar um oposto forte, no mesmo nível de outros países, mas em contrapartida temos grandes levantadores. O vôlei argentino tem tudo para crescer. Faz tempo que os melhores times do país estão com um bom investimento, temos uma liga muito técnica", afirmou ao blog o técnico Javier Weber, ex-treinador da Albiceleste e atualmente no comando do Bolívar.
Chapadmalal es más grande que Saquarema
O próximo passo, anunciado com pompa pelo presidente da FeVA, Juan Antonio Gutiérrez, é um ambicioso complexo chamado de Centro Internacional de Alto Rendimento de Chapadmalal, na cidade de mesmo nome, a 300 quilômetros de Buenos Aires. As obras ainda não começaram e não há data para a abertura do local, que aproveita a estrutura de um hotel desativado, mas a promessa não é pequena. A FeVA quer que esse centro de alto rendimento seja uma referência mundial.
"Teremos um ginásio poliesportivo, hotel com 725 apartamentos, teatro com capacidade para 600 pessoas, restaurante com capacidade para 800. Haverá dez quadras indoor e mais quatro para o vôlei de praia", informa Gutiérrez numa nota enviada ao blog. Nos bastidores, o presidente da FeVA, que está à frente da entidade desde o final de 2011, já disse mais de uma vez que Chapadmalal será muito melhor do que Saquarema.
Organização e boa estrutura
"A liga argentina tem crescido desde a época em que o William e o Wallace (Martins) jogaram lá (na segunda metade da década passada). Todas as equipes, principalmente a UPCN e o Bolívar, investem muito em estrangeiros e isso faz com que os jogadores argentinos cresçam. Eu pensava que era uma liga desorganizada, mas não é assim, é muito forte", disse ao SdR o ponteiro Piá, durante sua passagem por Betim (MG) para a disputa do Mundial de Clubes pelo Bolívar.
O atacante contou que a estrutura oferecida pelo time é excelente. "No nosso clube temos piscina, sauna, hidromassagem, como se fosse o CT de Saquarema. É muito melhor que vários times brasileiros. Uma coisa bem legal é que lá o ginásio é só nosso, a cidade (San Carlos de Bolívar) respira e vive o voleibol. Tanto lá como em San Juan (cidade do rival UPCN) se vive isso 24 horas".
"Na UPCN a estrutura é muito boa: quadra, academia, parte médica muito parecida com os times tops do Brasil", contou ao blog durante sua passagem por Betim o central Gustavão, num bate-papo sobre seu novo clube, atual campeão argentino.
O meio de rede destaca alguns pontos sobre o cenário que encontrou no país vizinho. "Eles vêm trabalhando muito, pensando na frente, estão formando comissão de atletas e a Argentina está com um investimento muito bom. É uma liga que antes não era tão boa, mas agora vejo que tem ótimo nível, com cinco times lutando pelo título. Isso é importante, pois no Brasil há três equipes que a gente sabe que vão chegar na ponta, mas lá não, está em aberto", comentou Gustavão.
Com mais jogos na TV aberta, vai começar a Superliga
O "ótimo nível" soa exagerado quando se pensa em campeonatos como o brasileiro, o italiano e o russo, mas é inegável que a situação melhorou por lá. Nomes conhecidos do voleibol internacional estão na liga argentina, como o veterano levantador italiano Valerio Vermiglio (UPCN) e o oposto australiano Thomas Edgar (Bolívar), entre outros.
Técnicos
Piá chama a atenção para a qualidade dos técnicos argentinos, que são reconhecidos em todo o mundo. "A quantidade de técnicos competentes que há na Argentina me chamou muito a atenção e é fantástico ter isso por trás de cada equipe. Eles fizeram uma Olimpíada fantástica, ganharam da Rússia, já estão em outro nível e não será surpresa estarem no pódio nas próximas competições", derrete-se o ponta.
O homem que conduziu o Sada Cruzeiro ao status de clube multicampeão foi o argentino Marcelo Mendez, cotado para assumir a seleção brasileira, caso Bernardinho diga não à Confederação Brasileira de Vôlei (CBV). Mendez era a segunda opção da FeVA, se Velasco não concordasse em dirigir o selecionado argentino em 2014, após a demissão de Javier Weber.
Te juró que aunque pasen los años
A Argentina já frequentou o pódio em Campeonato Mundial e Jogos Olímpicos, mas isso em uma época em que o voleibol era menos competitivo, numa década dominada primeiro pela antiga União Soviética e depois pelos Estados Unidos, longe do equilíbrio atual.
Quando a Geração de Prata do Brasil ficou em segundo lugar no Mundial 1982, disputado na Argentina, os anfitriões foram os terceiros. O time teve lugar no top 8 das grandes competições até a Olimpíada de Seul, em 1988, quando conseguiram aquela que é a sua maior glória, sempre relembrada: a medalha de bronze. Para dar mais sabor, a conquista veio numa batalha de cinco sets com o arquirrival. É claro que eles convenientemente omitem que a seleção brasileira trocou de técnico um mês antes dos Jogos, que novos atletas foram chamados e que o oposto titular Xandó se machucou dias antes do início da competição e voltou para casa. Aquela leva de jogadores argentinos nunca mais derrotou o Brasil.
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Doze anos depois, em Sydney 2000, a Argentina bateu a seleção de Radamés Lattari (última vitória sobre o time A do Brasil) nas quartas de final por 3-1, mas terminou em quarto lugar, tendo o oposto Marcos Milinkovic como principal arma. Acertou a trave de novo na Liga Mundial 2011, com mais um quarto lugar, quando se esperava que a equipe do levantador Luciano De Cecco e do ponta Facundo Conte chegasse ao pódio.
Será que conseguirão uma medalha já no Mundial 2018, com Bruno Lima mais experiente e a constante atualização do sistema de jogo pelo meticuloso Julio Velasco? É bom que se diga: os argentinos têm um dos melhores ponteiros do mundo, Facundo Conte, filho do ex-ponta Hugo Conte, único jogador argentino no Salão da Fama. O armador De Cecco, mesmo com visível sobrepeso, é um dos melhores em atividade na posição, um virtuose. Entre os feitos de Velasco está a transformação do então correto central Sebastián Solé em um dos tops na função. O técnico até testou Conte como oposto na temporada 2015, mas viu que ele seria mais útil na entrada de rede. A Argentina tem um sistema defensivo sólido. Se tiver quem coloque a bola no chão, será muito mais perigosa.
Popularidade
O vôlei não é tão popular na Argentina quanto no Brasil, mas já entra no top 5, diz uma fonte ligada à FeVA. O futebol, obviamente, é a paixão nacional. Em seguida vêm o basquete, o rúgbi e o tênis. Nas escolas o voleibol é bastante praticado, chegando ao top 3, conquistando cada vez mais espaço. As principais partidas da liga masculina são transmitidas pela TV – a decisão é feita em melhor de sete jogos.
Vôlei feminino
O feminino evolui de forma mais lenta, ainda conta com menos apoio, menor número de patrocinadores, mas já é a segunda força sul-americana, tendo deixado para trás o Peru, que de potência mundial nos anos 1980 hoje perde para seleções inexpressivas como o Quênia e a Venezuela.
Las Panteras, como são chamadas as atletas da seleção, pelo menos já migraram para ligas mais competitivas. Todas as 12 que representaram o país na Rio 2016, primeira participação olímpica do vôlei feminino argentino, jogam no exterior, quatro delas em campeonatos fortes como o brasileiro (as que estão na Superliga são Mimi Sosa, Tanya Acosta e Tatiana Rizzo) e o turco (Yas Nizetich), e outras duas jogadoras (Yael Castiglione e Morena Martinez) na ascendente liga polonesa. De qualquer forma, as argentinas estão longe do nível das brasileiras.
Colaboraram Carolina Canossa, que foi a Betim a convite da FIVB, e Sol Didiego, do site argentino Somos Vóley
Sobre a autora
Carolina Canossa - Jornalista com experiência de dez anos na cobertura de esportes olímpicos, com destaque para o vôlei, incluindo torneios internacionais masculinos e femininos.
Sobre o blog
O Saída de Rede é um blog que apresenta reportagens e análises sobre o que acontece no vôlei, além de lembrar momentos históricos da modalidade. Nosso objetivo é debater o vôlei de maneira séria e qualificada, tendo em vista não só chamar a atenção dos fãs da modalidade, mas também de pessoas que não costumam acompanhar as partidas regularmente.