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Saque viagem: a ideia de Renan Dal Zotto que inovou o vôlei

Sidrônio Henrique

14/06/2017 06h00

Renan sacando viagem num jogo entre sua equipe, a Atlântica Boavista, e a rival Pirelli, no ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, em 1983 (arquivo pessoal)

Para os mais jovens, ele talvez seja apenas o novo técnico da seleção brasileira masculina de vôlei. Os fãs mais antigos da modalidade devem tê-lo visto em ação, um dos maiores jogadores de todos os tempos. Mas o que muita gente desconhece, mesmo entre os mais velhos, é que o ponteiro Renan Dal Zotto criou um saque inovador utilizado até hoje, que se tornaria uma arma capaz, por exemplo, de virar partidas praticamente perdidas. Sim, o saque viagem – inicialmente chamado de Viagem ao Fundo do Mar, numa alusão a um popular seriado de TV – é uma invenção brasileira, pelas mãos do craque Renan, certa vez premiado pela Federação Internacional de Vôlei (FIVB) como "jogador mais espetacular do mundo".

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Como surgiu a ideia? O próprio Renan contou ao Saída de Rede. "Eu estava na seleção, disputávamos um torneio amistoso com várias equipes na China, em 1979, e havia esse jogador chinês, cujo nome eu não lembro, que dava dois passos laterais, como se fazia no saque de estilo asiático, só que ele tirava um dos pés do chão e batia de gancho na bola, fazia girar muito. Eu olhei aquilo e pensei, 'dá pra melhorar isso aí'".

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No entanto, somente depois de retornar ao Brasil, já treinando em seu clube na época, a Sogipa, de Porto Alegre (RS), foi que ele começou a colocar em prática o que vinha pensando desde a Ásia. Estava prestes a completar 19 anos. "Na final do Campeonato Gaúcho de 1979, dei esse saque pela primeira vez numa partida. Antes, só fazia em treino ou mesmo brincando. Fomos campeões e eu fiz sei lá quantos, mas foi um monte de pontos de saque. Foi estranho porque ninguém tinha visto aquilo, ninguém conhecia", relembrou Renan.

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Antes do viagem, um saque considerado agressivo era aquele chapado, sem efeito. "Você ia lá atrás, perto das placas de publicidade, e sentava a mão, aí a bola vinha flutuando até perder força e cair", disse o ex-jogador. O próprio viagem seria adaptado ao longo do tempo, ganhando variações, influenciando o saque flutuante. Não há linha de passe hoje em dia, por exemplo, que não fique receosa com um golpe veloz e chapado como o do central polonês Mateusz Bieniek.

O ponta executa o saque jogando pela seleção (arquivo pessoal)

Viagem na seleção
Renan, é claro, levou sua ideia para a seleção brasileira. "Mas a primeira vez que executei esse saque num jogo do Brasil foi só no Mundial 1982, contra a antiga Tchecoslováquia. Nós estávamos perdendo o jogo, eu dei esse saque e errei. Eu lembro muito bem só porque eu errei". Os brasileiros perderam para os tchecos por 1-3, mas se recuperariam no torneio e chegariam à final. Na decisão, quando o Brasil foi atropelado pela extinta União Soviética em sets diretos (15-3, 15-4, 15-5), Renan voltou a tentar o viagem, mas nada deu certo para a seleção brasileira naquele dia.

O SdR quis saber por que ele não havia tentado antes o novo saque em outras competições das quais participou, como os Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980, ou a Copa do Mundo 1981 – o Brasil foi bronze nesta última. "Eu era muito moleque pra tentar alguma coisa na seleção, tinha medo de dar errado", explicou.

Expoentes da geração de prata, William (esq.) e Montanaro em imagem de 2015 (Reprodução/YouTube)

Popularização
Meses depois do Mundial 1982, já na disputa do Campeonato Brasileiro, o levantador William Carvalho, atualmente técnico do time feminino de São Bernardo e ainda comentarista da RedeTV, e o atacante José Montanaro, ambos expoentes da geração de prata, começaram a sacar o viagem também. Não demorou muito para que outros jogadores, no Brasil e pelo mundo afora, copiassem a ideia.

"Foi o (José Carlos) Brunoro que botou o nome Viagem ao Fundo do Mar no saque, em 1983", contou Renan. Treinador do timaço da Pirelli, de Santo André (SP), Brunoro foi assistente técnico de Bebeto de Freitas na seleção, de 1981 a 1984, e mais tarde, de 1985 a 1987, ficou no comando. O locutor Luciano do Valle popularizou o nome, assim como havia feito em 1982 com o Jornada nas Estrelas, de outro craque da época, Bernard Rajzman.

A ponteira Luiza Machado foi a primeira atleta da seleção feminina a sacar viagem (Reprodução/YouTube)

Primeira jogadora
Em 1983, a ponteira Luiza Machado, então com 18 anos, foi a primeira mulher a sacar viagem na seleção – tanto na juvenil quanto na adulta. Luciano do Valle ainda tentou dar um nome diferente à versão feminina, chamando-o de "emancipação da mulher brasileira" durante as transmissões dos Jogos Pan-Americanos, em Caracas, Venezuela. Mas não colou. Era Viagem ao Fundo do Mar e não demoraria muito a ser encurtado para viagem.

Quando Renan Dal Zotto criou esse serviço e seus colegas de seleção o seguiram, a velocidade raramente ultrapassava os 90 km/h. O saque convencional ficava ali em torno dos 40 km/h. Nos anos 1990, sacadores como o brasileiro Marcelo Negrão e o búlgaro Lyubomir Ganev superaram a marca dos 100 km/h.

Neste século, o viagem fez ainda mais diferença. Nenhum fã se esquece dos saques do brasileiro André Nascimento, do italiano Andrea Sartoretti ou do cubano naturalizado italiano Ángel Dennis, entre outros. O levantador egípcio Ahmed Abdalla, melhor sacador da Copa dos Campeões 2005, batia tão forte e era tão regular que jogou duas temporadas na fortíssima liga italiana graças ao seu serviço – chegou inclusive a fazer parte da constelação do Sisley Treviso.

Stanley nos Jogos de Pequim: seu serviço obrigou o Brasil a receber com quatro passadores (FIVB)

Stanley em Pequim 2008
Ninguém foi tão demolidor no fundamento na década passada quanto o oposto americano Clayton Stanley em Pequim 2008. Pesadelo dos brasileiros na final ao sacar aberto, ele obrigou o técnico Bernardinho a tirar o oposto André Nascimento de quadra, colocar o ponta Murilo Endres para reforçar a linha de recepção e jogar com quatro passadores, em vez de três. Os Estados Unidos ficaram com o ouro e Stanley foi escolhido MVP, não apenas pelos seus potentes ataques durante o torneio, mas também pelo seu serviço devastador – no início do segundo set da decisão, ele abriu 6-0 numa sequência memorável de saques.

Não dá para falar do viagem sem mencionar o oposto húngaro naturalizado alemão György Grozer. Que o diga o líbero italiano Andrea Bari, nocauteado pelo Panzer durante o Pré-Olímpico 2012 (veja aqui o vídeo). Grozer coleciona proezas com seu saque, como fazer oito aces diante da Bulgária no Mundial 2014.

O serviço do italiano Ivan Zaytsev é uma pedra no sapato da seleção americana (FIVB)

Zaytsev, o terror dos EUA
Se os americanos já atormentaram os brasileiros com um serviço infernal, devem tremer ao escutar o nome do ponta/oposto italiano Ivan Zaytsev. Em pelo menos três oportunidades o atacante da Azzurra destruiu sonhos ianques. O momento mais notório foi na Rio 2016. No quarto set da semifinal olímpica, o placar apontava 22-19 a favor dos Estados Unidos, que lideravam a partida por 2-1 e estavam perto da decisão do ouro. Os italianos conseguiram a virada de bola e Zaytsev foi para o saque. Ele não saiu mais de lá até o final da parcial. Veio o tie break e a Itália, cheia de moral, liquidou os EUA.

Segundo a FIVB, os serviços mais rápidos já registrados pertencem ao ponta búlgaro Matey Kaziyski e à levantadora/oposta cubana Yanelis Santos. Ele com 132 km/h, ela com 103 km/h.

O que hoje pode ser um diferencial começou há 38 anos quando um adolescente chamado Renan Dal Zotto viu um chinês fazer um movimento diferente e teve uma ideia daquelas. Uma sacada genial.

Sobre a autora

Carolina Canossa - Jornalista com experiência de dez anos na cobertura de esportes olímpicos, com destaque para o vôlei, incluindo torneios internacionais masculinos e femininos.

Sobre o blog

O Saída de Rede é um blog que apresenta reportagens e análises sobre o que acontece no vôlei, além de lembrar momentos históricos da modalidade. Nosso objetivo é debater o vôlei de maneira séria e qualificada, tendo em vista não só chamar a atenção dos fãs da modalidade, mas também de pessoas que não costumam acompanhar as partidas regularmente.

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